ANALFABETISMO LATO SENSU

por Renato da Silva Oliveira

Este texto tomou a forma atual numa das infindáveis tardes ociosas de 2020 e foi inspirado pela memória de um grande amigo que usava o termo “analfaciente” para se referir a quem não tinha noções elementares de Ciência e como ela funciona.

O analfabetismo, estritamente falando, ou stricto sensu, é o estado de quem não sabe ler e escrever em qualquer língua. A língua falada precedeu e precede a língua escrita, salvo raríssimas exceções, de modo que a língua escrita teve e tem como objetivo primeiro e primordial reproduzir a língua falada. Mas depois disso, a língua escrita ganhou vida própria e passou a ter também características que independem da língua falada e que lhe são peculiares. Poesia concreta, por exemplo, é algo que não faz muito sentido na língua falada.

De qualquer modo, a alfabetização implica no aprendizado básico de sinais gráficos, as letras, acentuações, etc., e os seus significados em diversas situações, formando sílabas e palavras em contextos diversos, quando aparecem sozinhos ou juntos, e dos eventuais sons a que eles correspondem em cada situação… enfim, a alfabetização pode ser comparada e análoga à apreensão de um código de comunicação, ainda que não necessariamente se preste à comunicação (por exemplo, quando  pensamos usando a linguagem, não estamos, propriamente, nos comunicando, e quem pensa em duas línguas sabe que há situações em que a estrutura da língua, de certa maneira, é que encaminha o pensamento).

 

TEORIA DA COMUNICAÇÃO

Aprender uma linguagem implica ao menos no domínio de um código, que mesmo quando não seja utilizado para comunicar, poderia sê-lo. No caso do texto escrito, podemos identificar várias “camadas” de significados, desde a literalidade pura e simples até as entrelinhas, as figuras de linguagem, as nuances do estilo, o contexto geral e mesmo a forma, gráfica ou física, em certos casos.

Escrever é codificar, e ler é decodificar, ainda que não apenas isso.

 

Então, o analfabetismo mais rudimentar é, literalmente, o desconhecimento, a ignorância, o não domínio do código da leitura e escrita, ao menos em sua camada mais elementar, que é a da literalidade. Evidentemente o mero conhecimento do código da leitura e escrita não implica, necessariamente, que não possa haver deficiências graves no domínio da linguagem, até o ponto de caracterizar algum tipo de analfabetismo; por exemplo, quando se consegue transformar letras e palavras em sons, mas não simultaneamente associar-lhes significados, pode-se dizer que ocorre o analfabetismo funcional.

De qualquer maneira, certamente, o desconhecimento do código de escrita e leitura implica, necessariamente, em analfabetismo.

Assim entendido, o conceito de analfabetismo pode ser estendido para indicar o desconhecimento de outros códigos, além do que usamos para ler e escrever. É esse o “analfabetismo lato sensu”.

Existem muitos outros códigos que usamos cotidianamente para nos comunicar e que podem nos ajudar a ordenar pensamentos, raciocinar, sintetizar conceitos … Por exemplo:

 

  • Números e sinais gráficos matemáticos (1/5=20% ou 272-32=6!);
  • Simbologia química (H20 ou H2SO4 + 2H2O = 2H3O + SO4);

  • Faixa de isolamento zebrada amarela e preta;
  • Faixas de organização de filas em bancos;
  • Setas em caixas de transporte;
  • Emoticons e emojis ;

  • Ícones de programas de computador;
  • Sinalização de trânsito;
  • Ícones nos painéis de carro;

  • Sinalização icônica para deficientes;
  • Sinalização sonora em fábricas, trens, metrôs, aeroportos, etc.

ANALFABETISMO EM SENTIDO AMPLO

O não domínio desses códigos pode ser caracterizado como um tipo de “analfabetismo” específico, usando o termo em sentido mais amplo. Por exemplo, desconhecer o que possa significar 3x+2=5 ou S={ x ∈ IR | 0 < x ≤ 5 } indica um analfabetismo matemático. Para não ficarmos apenas com exemplos da matemática, consideremos a incapacidade de diferenciação entre arte egípcia e arte renascentista, ou entre música barroca, samba e free jazz, ou entre um continente, um país e uma ilha, ou entre as épocas de Júlio César, Napoleão e Leônidas, ou entre as épocas e estilos de Leonardo da Vinci e de Pablo Picasso, ou Renoir ou Dali… Em quaisquer áreas há sempre um conjunto básico, elementar, de conhecimentos cujo domínio permite decodificar informações. O não domínio desses conhecimentos decodificadores é um tipo de “analfabetismo” em sentido amplo, ou lato sensu.

Enquanto o analfabetismo stricto sensu é considerado um grande revés, uma coisa muito ruim e faltosa, outros analfabetismos (lato sensu) são ignorados em grande medida ou, quando reconhecidos, relevados como supérfluos.

 

ANALFABETISMO MATEMÁTICO

O analfabetismo matemático é muito presente em quase todas as comunicações corriqueiras, orais ou literais. Meios de comunicação parecem ter horror ao mero uso dos algarismos arábicos, dando sempre preferência a formas extensas ou, no máximo, com uso de poucos algarismos. Assim, em vez de escrever que “há 4 pontos cardeais sobre o horizonte”, prefere-se sempre escrever “há quatro”; em vez de escrever que o saldo numa conta é “R$1.500.000,00” prefere-se escrever “um milhão e meio de reais”; e mesmo coisas simples como “2.000” são escritas quando muito como “2 mil”. O analfabetismo matemático não apenas é aceito como é incentivado por normas estilísticas implícitas e explícitas, principalmente sob o manto teórico e falso de tornar a leitura mais fácil.

Podemos estabelecer graus diversos de analfabetismo matemático. Desconhecer como ler e interpretar que 2+7=9 é muito mais grave que desconhecer que 6!=720 ou que 25= 32, ou ainda aquelas declarações de conjunto solução como , ou a veracidade da afirmação de que “existem apenas 10 tipos de pessoas: as que entendem e as que não entendem o sistema de numeração binário”.

Num teste rápido: quantas pessoas a cada 100 saberiam dizer prontamente se 1/5 é maior ou menor que 20% ou se 13% de 17 é maior ou menor que 17% de 13? Em princípio, a resposta correta exige apenas conhecimentos básicos, do Ensino Fundamental. Mas quantos com “Ensino Superior” sequer têm noção correta do significado de uma percentagem e de sua “tradução” como uma fração?

 

ANALFACIENTISMO

Um tipo de analfabetismo que é muito mais grave, tão ou mais presente que o analfabetismo matemático, é o analfabetismo científico.

Um grande divulgador da Astronomia, o Prof. Romildo Póvoa Faria, usava um termo significativo para o desconhecimento crônico de conceitos básicos de Ciência e mesmo do que é e como funciona a Ciência: analfacientismo.

O analfacientismo é, com enorme peso, corresponsável pelas sucessivas e crescentes ondas de anticientificismo que vicejam em nosso meio. Principalmente, mas não apenas, nos meios virtuais, nas redes sociais, blogs, canais de vídeo na internet, etc.

Coisas como movimento anti-vacina, negacinismo climático, terraplanismo, anti-ogms e anti-transgênicos, anti-fertilizantes e defensores radicais da “agricultura orgânica”, defensores de “terapias alternativas” ou “complementares” como homeopatia, acupuntura, aromaterapia, quiropraxia, reflexologia, e uma infinidade de outras bobagens, de um ponto de vista da Ciência, explicam-se somente através de um profundo e profuso analfacientismo pandêmico. Uma vertente mais sutil e mais perigosa de analfacientismo é o messianismo farmacêutico, que retoma o mito da panaceia usando produtos da Ciência mas desfigurando-os sob crenças absurdas. Foi o caso mais ou menos recente da fosfoetanolamina e das atuais cloroquina e ozonioterapia.

Enquanto outros analfabetismos sanam-se ensinando códigos mais ou menos simples e objetivos, o analfacientismo é muito mais esguio, muito mais difícil de identificar e muito mais difícil de corrigir. O “código”, no caso, é muito mais complexo e difícil de aprender e de usar.

Mesmo quem faz Ciência e usa esse “código” diariamente, nem sempre pensou sobre ele de maneira explícita, e age como quem fala muito bem uma linguagem por ter lido muito mas sem nunca ter estudado sistematicamente sua gramática. Ainda assim, a imensa maioria dos cientistas e pesquisadores, que fazem e usam Ciência no dia a dia, conseguem reconhecer sinais, decifrar códigos e saber se o que veem, leem, ouvem ou presenciam é Ciência ou não. E quando não, se tenta se travestir de Ciência e é alguma nefasta pseudociência, se é apenas não-ciência, com afirmações baseadas em premissas sem evidências objetivas, ou se é anticiência, com afirmações que negam peremptoriamente a Ciência.

A mera não-ciência é comum, é útil e é reconhecível facilmente no dia a dia; por exemplo, nas avaliações estéticas ou subjetivas como “eu gosto de Renoir”, ou “eu aprecio torta de abacaxi”.

A anticiência também é, infelizmente, presente no dia a dia, e pode ser reconhecida em atitudes como negar-se a tomar vacinas ou obrigar filhos menores a não toma-las.

E a pseudociência, dessas 3 categorias, talvez seja a mais danosa cultural e socialmente, a mais nefasta, a mais deletéria; e pode ser reconhecia em práticas como espiritismo, acupuntura, homeopatia, reflexologia, programação neurolinguística, astrologia, e tantas outras bobagens corriqueiras e, infelizmente, também tão presentes no cotidiano. Essas práticas absurdas, apesar de não terem fundamento na Ciência, valem-se de termos, de ideias vagas, de afirmações descontextualizadas da Ciência. E para quem não domina o código, para quem não sabe ler os sinais, pode acabar passando por Ciência. As pseudociências são perigosas porque valem-se da autoridade prática, factual, da Ciência genuína, sem entregar correspondentemente a sua funcionalidade. Ciência funciona! Televisores, celulares, computadores, aviões, submarinos, internet, ressonância magnética, penicilina, analgésicos… são produtos de teorias científicas aplicadas através de técnicas que, ao mesmo tempo, funcionam como ferramentas poderosas para a Ciência. Dessa funcionalidade, explícita e verificável no dia-a-dia em nosso entorno, advém a autoridade da Ciência, que as pseudociências tentam emprestar, mas sempre sem entregar funcionalidade alguma.

Enquanto a anti-ciência é como um exército regular em guerra contra a Ciência, e negando-a aberta, explícita e peremptoriamente, a não-ciência é como um país neutro, sem noção do que é certo e do que é errado, e a pseudociência é um espião camuflado e infiltrado.

Conhecer o que é e como funciona a Ciência é fundamental para evitar a anti-ciência, ser parcimonioso com a não-ciência e execrar a pseudociência. E esse conhecimento é, fundamentalmente, compreender um código, alfabetizar-se em Ciência, ou “alfacientizar-se”, como dizia o Prof. Romildo.

 

ENSINO E EDUCAÇÃO

Nos textos do MEC que normatizam a educação básica, como a BNCC, há a expressão “letramento científico” com significado similar à “alfacientização”. Entretanto, nos mesmos documentos, comete-se um erro crasso, ou ao menos um enorme engano, ao propugnar apenas o utilitarismo da Ciência.

A BNCC, por exemplo, que é um texto oficial recente, com força de lei, que normatiza e direciona basilarmente os currículos da Educação Básica, defende a Ciência como ferramenta essencial para o cidadão, sendo seu ensino-aprendizado e o consequente domínio de competências cognitivas e habilidades práticas em seu uso merecidamente enaltecidos. A relação direta entre Ciência e tecnologias dela derivadas ou reforçadas fica evidenciada nessa visão utilitária da Ciência como ferramental a ser usufruído. Mas a BNCC peca enormemente ao ficar apenas nisso, e ao negar à Ciência seu valor intrínseco, como produção intelectual e fenomenal humana, como arte e como cultura, e ao negligenciar seus aspectos merecedores de juízos éticos e estéticos, de valoração subjetiva, individual, e também de valoração objetiva e coletiva.

Educar é, em grande medida, ensinar códigos; ensinar a reconhecê-los e utilizá-los. Ensinar o código que permite a identificação e compreensão da Ciência, ao menos num âmbito funcional elementar, é “alfacientizar”, ou “letrar cientificamente”.

A alfacientização não deve restringir-se aos aspectos utilitários da Ciência instrumentalizada como ferramenta para outros tipos de conhecimentos e atividades intelectuais ou práticas. Ciência é produção cultural humana e como tal tem valores intrínsecos, passíveis de apreciações e juízos éticos e estéticos. Alfacientizar-se implica mais do que aprender a aplicar Ciência como ferramenta eficaz; implica em reconhecer beleza e significados morais da Ciência, em apreciar as simetrias expostas e clarificadas por teorias e “leis”, e em ajuizar sobre a condição humana no cosmo à luz da Ciência.